
Bem-vindos a mais uma análise do Por Trás do Discurso. Hoje, mergulhamos em uma das contradições mais profundas do capitalismo — aquela que sustenta toda a arquitetura ideológica do sistema e que, curiosamente, raramente é mencionada nos debates públicos: a tensão inescapável entre valor de uso e valor de troca.
David Harvey, um dos mais argutos intérpretes de Marx na atualidade, identifica esta como a Contradição nº 1 do capital. E não se trata de um mero exercício teórico: é nesta fratura que reside o segredo de como o discurso capitalista opera para naturalizar a desigualdade, disfarçar a espoliação e converter necessidades humanas básicas em oportunidades de lucro.
Dois Mundos em Guerra: O Íntimo e o Uniforme
Toda mercadoria em uma sociedade capitalista carrega em si uma dualidade explosiva:
Valor de Uso é o reino da particularidade, da experiência vivida, da necessidade concreta. Uma casa, por exemplo, não é apenas “uma casa” — é abrigo contra o frio, é o espaço onde crianças crescem, onde memórias se acumulam, onde a vida se reproduz em suas dimensões biológicas e afetivas. É lar, é refúgio, é território de pertencimento. Seu valor de uso é infinitamente variado e profundamente idiossincrático.
Valor de Troca, por outro lado, é o reino da abstração, da quantificação fria. A casa se torna um número — tantos metros quadrados multiplicados por um preço por metro, localizados em tal bairro, valendo X milhares de reais. Um dólar é sempre um dólar; o valor de troca é uniforme, homogêneo, indiferente às particularidades humanas.
A contradição? Esses dois valores não coexistem pacificamente. Eles estão em permanente tensão — e quando essa tensão se agrava, o sistema todo pode entrar em colapso.
A Grande Inversão: Quando o Meio se Torna o Fim
Aqui está o pulo do gato ideológico do capitalismo: historicamente, o sistema inverteu a ordem natural das coisas. O valor de troca, que deveria ser apenas um meio para alcançar valores de uso, tornou-se o fim em si mesmo.
Vejamos o caso emblemático da moradia.
Em outros tempos e contextos, casas eram construídas para serem habitadas. Pioneiros erguiam suas próprias moradias com trabalho coletivo e ajuda mútua. Estados construíam habitação pública para garantir o direito ao abrigo. O objetivo era claro: satisfazer a necessidade de moradia.
Mas nas sociedades capitalistas avançadas, a moradia é produzida especulativamente. O construtor não está interessado primariamente em criar lares — está interessado em extrair lucro, juros sobre empréstimos, renda da terra. A criação de valor de uso (a casa habitável) é apenas um meio secundário para atingir o verdadeiro objetivo: a acumulação de valor de troca.
O resultado? A moradia se converte primeiro em instrumento de poupança, depois em ativo especulativo — tanto para construtores e financistas quanto para os próprios compradores, que passam a encarar suas casas não como lares, mas como investimentos.
E a consequência social? A primazia do valor de troca condena milhões de pessoas à insegurança habitacional, aos aluguéis extorsivos, aos financiamentos eternos, enquanto imóveis permanecem vazios aguardando a melhor janela de valorização.
O Discurso da Eficiência: A Mentira Bem Contada
É aqui que o discurso capitalista revela sua maestria ideológica. A partir dos anos 1970, com a ascensão do consenso neoliberal, passou-se a defender uma narrativa sedutora: o Estado deve se retirar da provisão de bens essenciais — habitação, saúde, educação — para “abrir essas áreas à eficiência do mercado”.
O mantra que ouvimos repetidamente em noticiários, em discursos de economistas, em posts de influenciadores liberais é sempre o mesmo: “a maneira mais barata, eficiente e adequada de obter valores de uso é libertando o espírito empreendedor faminto de lucro”.
Esta é a grande mentira que devemos desmascarar.
Porque quando setores essenciais para a vida humana — saúde, moradia, educação, água, energia — são entregues à lógica do lucro, o que acontece não é um milagre de eficiência, mas um duplo movimento perverso:
- O sistema mercantilizado serve muito bem aos ricos — aqueles que podem pagar pelos melhores planos de saúde, pelas melhores escolas, pelos melhores bairros — enquanto penaliza sistematicamente todo o resto da população.
- A tensão entre valor de troca e valor de uso escala até o ponto de ruptura, gerando crises catastróficas. A crise do mercado imobiliário de 2007-2009 nos Estados Unidos, Irlanda e Espanha é o exemplo perfeito: a especulação desenfreada com o valor de troca das casas negou o valor de uso adequado da moradia a milhões de pessoas, enquanto o sistema financeiro quase desabava.
Desmascarando o Discurso: O Que Eles Realmente Defendem
Quando você ouvir figuras públicas — políticos, economistas, influenciadores digitais — defendendo a privatização da saúde pública, a mercantilização do ensino superior, a “liberdade” do mercado imobiliário, saiba exatamente o que está em jogo:
Eles estão defendendo a primazia do valor de troca sobre o valor de uso.
Estão dizendo que é aceitável que hospitais priorizem o lucro sobre a cura, que universidades priorizem a rentabilidade sobre a formação crítica, que o mercado de casas priorize a especulação sobre o direito de morar.
E fazem isso travestidos de “racionalidade econômica”, de “realismo fiscal”, de “pragmatismo”. O discurso da eficiência é a cortina de fumaça que esconde a brutalidade da acumulação.
A Tarefa da Crítica: Resgatar o Valor de Uso
David Harvey é cristalino em sua conclusão: uma sociedade verdadeiramente racional deveria buscar a produção e provisão democrática de valores de uso para todos, sem a mediação mercantil — ao invés de um sistema que converte cada necessidade humana em oportunidade de lucro para poucos.
A luta para transcender o capital passa, necessariamente, por abandonar a busca perpétua pelo crescimento dos valores de troca e nos concentrar na criação coletiva de valores de uso: casas para morar, hospitais para curar, escolas para emancipar, comida para nutrir.
Exige que a satisfação das necessidades sociais comuns tenha precedência absoluta sobre a acumulação privada de riqueza.
Para finalizar: David Harvey diz que o motor econômico do capitalismo “oscila entre soltar faíscas e parar de repente ou explodir esporadicamente sem nenhum alerta”. Nossa análise hoje revela que o conflito entre o que precisamos usar e o que nos obrigam a pagar é a faísca original desse motor instável.
Desmascarar essa contradição no discurso público é nosso trabalho. Porque a crítica, camaradas, é sempre ferramenta de libertação.
Por Trás do Discurso
Revelando o que se esconde nas palavras do poder
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