
Você já foi maltratado por aquele funcionário da repartição pública que parece ter prazer em dificultar sua vida? Ou pelo supervisor que abusa da mínima autoridade que possui? Este fenômeno não é acidental nem resultado de “personalidades difíceis” — é a expressão cotidiana de contradições estruturais do modo de produção capitalista.
A Hierarquia Como Necessidade do Capital

Para compreender o “pequeno tirano”, precisamos partir da estrutura fundamental da sociedade capitalista: a relação de exploração entre capital e trabalho. O capitalista extrai mais-valia do trabalhador, mas essa extração não pode funcionar de forma direta e transparente — ela precisa de mediações.
É aqui que surge a hierarquia. Entre o proprietário dos meios de produção e o trabalhador produtivo, desenvolve-se toda uma camada de gestores, supervisores, coordenadores, fiscais. Esses agentes têm uma função específica: garantir a disciplina necessária para a acumulação de capital.
Como Marx observou ao analisar a divisão manufatureira do trabalho, a própria organização hierárquica do processo produtivo não é neutra — ela reflete e reproduz as relações de dominação de classe.
A Alienação em Camadas

O trabalhador sob o capitalismo está alienado em múltiplas dimensões:
Do produto do trabalho: Aquilo que ele produz não lhe pertence, é apropriado pelo capitalista.
Do processo de trabalho: Ele não controla como, quando ou por que trabalha. Suas ações são determinadas externamente.
De sua essência humana: O trabalho, que deveria ser atividade livre e criativa, torna-se mero meio de sobrevivência.
Dos outros trabalhadores: Em vez de cooperação livre, há competição forçada e hierarquia.
Agora, considere o supervisor, o gerente intermediário, o funcionário com pequeno poder burocrático. Ele está duplamente alienado: sofre a alienação de quem está acima e participa ativamente da alienação de quem está abaixo. Ele é simultaneamente oprimido e opressor.
A Reprodução Ideológica da Dominação

Aqui encontramos um dos mecanismos mais perversos do capitalismo: a fragmentação da classe trabalhadora através de micro-hierarquias. Cada pequeno degrau de poder cria a ilusão de distinção, de superioridade, de “não ser como os de baixo”.
O porteiro que humilha o morador, o atendente público que dificulta o acesso ao serviço, o supervisor que abusa da equipe — todos estão reproduzindo em escala micro a lógica macro do capital. Eles internalizam e replicam a dominação que sofrem.
Isso não é falha moral individual. É a ideologia dominante em ação. Como Marx e Engels afirmaram: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes”. O trabalhador que assume um cargo de supervisão é incentivado — materialmente e simbolicamente — a adotar os valores e práticas da classe proprietária.
A Armadilha da Solução Moral-Religiosa

Quando o discurso religioso propõe “humildade”, “servir aos outros” e “liderança servidora” como solução, ele opera uma inversão ideológica fundamental: transforma um problema estrutural em defeito individual.
Esta não é uma característica acidental da religião — é sua função histórica na manutenção da ordem social. Como Marx observou, “a religião é o ópio do povo”: ela oferece consolação imaginária para sofrimento real, deslocando a solução do plano material para o espiritual.
Observe a astúcia dessa operação ideológica:
- Individualiza o problema: “Você está sendo um pequeno tirano porque falta humildade”
- Moraliza a estrutura: “O problema é falta de amor, não a hierarquia capitalista”
- Naturaliza a dominação: “Sempre haverá chefes e subordinados, o que importa é como você age”
- Culpabiliza o oprimido: “Se você sofre pressão, a solução é ser mais humilde com quem está abaixo”
O resultado prático? A estrutura permanece intocada enquanto os trabalhadores são convocados a aceitar a opressão com mansidão.
A Base Material da Consciência
O materialismo histórico nos ensina: não é a consciência que determina o ser social, mas o ser social que determina a consciência. As pessoas não agem de determinada forma porque têm determinados valores — elas desenvolvem determinados valores porque estão inseridas em determinadas relações materiais.
Vejamos concretamente:
O caso do motorista de ônibus

A empresa de ônibus precisa lucrar. Para isso, reduz custos: salários baixos, jornadas extensas, metas impossíveis, péssimas condições de trabalho. O motorista sofre essa pressão diariamente.
Quando ele age de forma grosseira com um passageiro, não é por “falta de amor” — é porque sua situação material objetiva o coloca sob estresse extremo. Ele está reagindo às condições concretas de exploração.
A solução idealista seria: “motorista, seja mais humilde, tenha amor ao próximo”. A solução materialista: transforme as condições materiais de trabalho. Reduza a jornada, aumente o salário, humanize o processo. A consciência e o comportamento se transformarão consequentemente.
O funcionário público autoritário
Por que tantos servidores públicos desenvolvem comportamento autoritário? Não por serem “naturalmente ruins”, mas porque:
- Trabalham em estruturas burocráticas altamente hierarquizadas herdadas do Estado burguês
- Têm pouco controle sobre seu trabalho (decisões vêm de cima)
- Sofrem desvalorização social e salarial
- Detêm um micro-poder sobre o cidadão (acesso a serviços)
- Esse micro-poder é sua única forma de compensação simbólica
A burocracia estatal no capitalismo não existe para servir o povo — existe para administrar a dominação de classe. O funcionário autoritário é apenas um engrenagem desse mecanismo maior.
A Dialética da Opressão
Há aqui uma contradição dialética fundamental: o pequeno tirano é simultaneamente vítima e algoz. Ele é oprimido pela estrutura capitalista e, ao mesmo tempo, participa da opressão de outros.
Esta contradição não pode ser resolvida no nível individual. Não adianta:
- Pedir para ele “ser mais humilde” (solução moral)
- Oferecer “treinamento de liderança” (solução gerencial)
- Promover “cultura organizacional positiva” (solução empresarial)
Todas essas “soluções” mantêm a estrutura intacta e tentam apenas suavizar suas manifestações. É como aplicar anestésico em alguém sendo torturado — alivia o sintoma sem eliminar a causa.
A Questão do Poder
Marx demonstrou que o poder na sociedade capitalista não é algo que se distribui ou se reparte — ele está fundamentalmente ligado à propriedade dos meios de produção. Quem detém os meios de produção detém o poder real.
Todas as micro-hierarquias que vemos (supervisor, coordenador, síndico, porteiro) são derivações desse poder fundamental. São formas de distribuir funções de controle sem distribuir propriedade real.
O supervisor tem “poder” sobre o trabalhador, mas não tem poder real — ele não é dono da empresa, não decide o que produzir, não controla os lucros. Seu “poder” é apenas a função de vigiar e controlar em nome do verdadeiro detentor de poder: o capitalista.
A Falsa Solução da “Democratização”
Surgem frequentemente propostas de “democratizar as relações de trabalho”, “criar ambientes horizontais”, “eliminar hierarquias desnecessárias”. Dentro dos limites do capitalismo, essas medidas têm alcance limitado.
Por quê? Porque enquanto a relação fundamental (capital x trabalho) permanecer, a hierarquia será recriada. Você pode eliminar cargos intermediários, mas o capitalista ainda terá poder absoluto sobre os trabalhadores porque ele detém os meios de produção.
É como tentar criar democracia mantendo a escravidão. A contradição fundamental torna impossível a realização plena do objetivo.
Isso não significa que não devemos lutar por melhorias imediatas — devemos! Mas compreendendo que são conquistas parciais dentro de uma luta maior.
A Transformação Real: Superação das Relações de Produção
A única solução definitiva para o problema do “pequeno tirano” é a transformação radical das relações sociais de produção. Isso significa:
Socialização dos meios de produção
Quando os trabalhadores coletivamente possuem e controlam os meios de produção, elimina-se a base material da hierarquia capitalista. Não há mais capitalista extraindo mais-valia, logo não há necessidade de supervisores para garantir essa extração.
Controle operário
Os trabalhadores decidem democraticamente sobre o processo produtivo: o que produzir, como produzir, em que ritmo, com qual finalidade. A gestão deixa de ser imposição externa e torna-se auto-organização coletiva.
Eliminação da divisão entre trabalho manual e intelectual
A separação entre “quem pensa” e “quem executa” é característica do capitalismo. Numa sociedade socialista, essa divisão é progressivamente superada através da educação politécnica e da rotação de funções.
Extinção gradual do Estado burguês
A burocracia estatal opressiva não pode ser simplesmente “reformada” — ela precisa ser substituída por formas de organização radicalmente democráticas, baseadas no poder popular direto.
A Luta de Classes Como Motor da Transformação

Mas como chegamos lá? Não através de conversão moral dos indivíduos, mas através da luta de classes.
A história de toda sociedade até hoje é a história da luta de classes. O capitalismo cria suas próprias contradições e seus próprios coveiros: a classe trabalhadora organizada.
Quando trabalhadores se organizam em sindicatos, movimentos sociais, partidos revolucionários, eles desenvolvem consciência de classe. Deixam de se ver como indivíduos isolados competindo entre si e passam a se reconhecer como classe com interesses comuns em oposição ao capital.
É essa organização coletiva, essa luta consciente, que pode transformar as estruturas. Não a boa vontade individual de um supervisor “mais humilde”.
Práxis Revolucionária: Teoria e Prática
O materialismo histórico não é apenas teoria contemplativa — é filosofia da práxis, da transformação revolucionária da realidade.
O que isso significa concretamente?
- Compreender cientificamente as estruturas de dominação (análise marxista)
- Organizar-se coletivamente (sindicatos, movimentos, partidos)
- Lutar por conquistas imediatas (melhores salários, condições, direitos)
- Acumular forças para a transformação estrutural (revolução socialista)
Cada luta parcial — por melhores salários, contra assédio moral, por direitos trabalhistas — é simultaneamente:
- Uma melhoria concreta das condições de vida
- Uma escola de formação da consciência de classe
- Um acúmulo de força para lutas maiores
Conclusão: Da Indignação Moral à Consciência de Classe

O problema do “pequeno tirano” revela, em escala micro, a lógica macro da sociedade capitalista: hierarquia, alienação, dominação.
A indignação moral contra o supervisor abusivo é legítima, mas insuficiente. Precisamos compreender as raízes estruturais desse comportamento e organizar a luta coletiva para transformar essas estruturas.
Não se trata de “perdoar” ou “compreender” o pequeno tirano no sentido de aceitar passivamente sua opressão. Trata-se de compreender para transformar — entender que ele é produto de um sistema e que apenas a luta organizada pode superar esse sistema.
A emancipação humana não virá da conversão moral dos indivíduos, mas da transformação revolucionária das relações sociais de produção. Quando os trabalhadores controlarem coletivamente os meios de produção, quando a sociedade se organizar para satisfazer necessidades humanas em vez de acumular capital privado, então — e somente então — criaremos as condições materiais para relações verdadeiramente humanas, livres da dominação e da hierarquia.
Como Marx escreveu: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo.”
Este texto faz parte do projeto “Por Trás do Discurso”, que busca analisar fenômenos cotidianos à luz do materialismo histórico-dialético. Quer aprofundar o debate? Sugira temas nos comentários!
Deixe um comentário